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Vendavais

Rookie

Nessa onda de protestos, não me atrevo a comentar. Não sei o que está acontecendo, e, se alguém não está confuso, está mal informado. Física nenhuma explica a maior parte das mobilizações, estranhamente súbitas, pacíficas ou violentas, justificadas ou casuais. Ninguém consegue me dizer se o que vejo é a segunda revolução francesa ou uma micareta da classe média, então também não arrisco. Ainda, como físico estatístico, fenômenos coletivos dessa sorte sempre me interessam. Hoje falo de um de meus favoritos, o vento, e tento tirar algumas lições da física das moléculas do ar.

Em uma aula minha sobre termodinâmica, eu explicava, em meu jeito empolgado característico de quando falo de termodinâmica, que temperatura é o movimento dos átomos; que quanto mais quente, mais rápidos eles estão. Uma aluna não gostou, não concordou, e, comparando com sua experiência, decidiu perguntar: “Mas se o vento é o ar em movimento, por que ele é frio?”. Ah, que pergunta complicada.

E um dos problemas da pergunta foi induzido por mim, quando, simplificando, compliquei. Dizendo que temperatura e velocidade são a mesma coisa, esqueci de dizer que o ar, como todo gás, possui moléculas em velocidades altas indo de um lado para o outro. O ar entre seu rosto e o computador, por mais parado que pareça, está a uma velocidade mais alta que qualquer carro de corrida, mais alta que a maior parte dos aviões.

No século XIX, os grandes da física estatística acreditaram na teoria atômica, uma noção ainda controversa na época. Eles acreditaram que o ar é feito de átomos e que a temperatura vem do movimento dessas partículas, que o calor não é uma partícula, mas como as partículas se movem. Maxwell, o maior dentre nós naquele século, tomou coragem, acreditou em suas equações e deduziu a velocidade média dos átomos no ar: algo perto de 500m/s. Não apenas ele calculou a média, ele determinou a densidade de probabilidade dessa velocidade. Essa densidade, conhecida como distribuição de Maxwell-Boltzmann, tem essa cara:

max_boltzNesse gráfico, a distribuição A significa um gás em temperatura menor, enquanto o B representa um mais quente. É fácil ver que no B haverá mais moléculas com mais velocidade, e no A as moléculas estarão mais concentradas em regiões de velocidade mais baixa. Maxwell descobriu isso usando apenas matemática, um feito impressionante em uma época em que a própria existência dos átomos era questionada. Como de costume, ele tinha razão, ainda que nenhuma verificação disso fosse possível na época. Maxwell deduziu o que seria a distribuição de velocidades de partículas se movendo em direções aleatórias e cujas colisões seriam como as de bolas de bilhar; sendo esse gráfico o resultado da colisão de muitas, muitas dessas partículas.

Maxwell não pôde checar isso, mas eu posso. Não sou uma fração do físico que foi Maxwell, mas meu celular tem mais poder computacional que a NASA quando enviou o homem à Lua, isso deve me ajudar. Escrevi novamente um pequeno código com as seguintes configurações: temos bolinhas em diversas velocidades indo para todos os lados, elas colidem e trocam energia e momento nessas colisões. A energia total se conserva e o momento também, o que torna todas as colisões perfeitamente elásticas, como se eu tivesse programado um grande jogo de bilhar sem caçapas. Também fiz um gráfico da velocidade de cada bolinha, um histograma, que diz quantas bolinhas possuem aquela velocidade naquele instante. Como elas se movem, o histograma muda, mas, usando bem pouco de sua imaginação, você pode perceber que ele é exatamente a distribuição de Maxwell-Boltzmann.

IMAGEM

Novamente, coloquei em um link à parte para não pesar seu navegador. Essa simulação é mais complicada e eu recomendo fortemente que você use o navegador Chrome para que ela fique mais fluída. Mais uma vez, bonus round! Você pode mexer nas bolinhas e, dando energia, aumentar a temperatura, que aparece no gráfico em amarelo! Com isso, consegue perceber exatamente que temperatura é a velocidade das partículas, que era o que queria explicar a minha aluna.

O vento é um tipo diferente de movimento. Enquanto as partículas se mexem aleatoriamente em alta velocidade, se eu coloco uma tendência nelas a irem para um lado, se eu coloco uma pequena diferença entre esquerda e direita, então há o que chamamos de vento. Mas note que qualquer brisa é profundamente mais lenta que a velocidade individual de qualquer molécula, um tornado não chega perto de reproduzir a velocidade nem de uma partícula lenta que compõe aquela grande massa de ar.

O vento é frio porque ele, atingindo sua pele, rouba aquela camada de ar já aquecido que a cobria e força sua pele a esquentar essa nova camada de ar; com isso, perdendo calor no processo. O vento não é frio, você sente que ele é frio porque perde calor, mas essa sensação é uma ilusão. Encostar em um metal ou em uma borracha pode fazer parecer com que o metal esteja mais frio, mas a situação é a mesma; ambos estão na mesma temperatura, mas um rouba mais calor seu que o outro.

Pessoas são mais parecidas com átomos do que gostariam. Em toda aglomeração há gente de todo o espectro político, muitas em alta temperatura, algumas motivadas demais, que até causam estragos. E há pessoas passivas, apáticas, e cada uma em sua direção. Em primeiro lugar, não se pode julgar um gás pelas partículas que estão com temperatura duas, três, cinco vezes a temperatura média. Acredite, no ar à sua frente, há partículas com velocidades superiores a 5.000Km/h, elas poderiam fazer você entrar em combustão expontânea, mas são uma minoria. Em segundo lugar, um gás, sozinho, não vai a lugar nenhum; é necessário haver uma tendência para irem para o lado; você não sente as partículas, sente apenas o vento. Tenha sempre ciência de que seguir apenas a direção que lhe dá na telha contribui apenas como um ruído aleatório na estatística, um desvio esperado da média, que será compensado por quem pensa no oposto e está presente; é preciso consenso, foco, ou seremos apenas partículas ricocheteando em uma caixa. E, em terceiro lugar, não podemos nos esquecer da termodinâmica: apenas em alta temperatura é possível uma mudança de estado.

Abaixo de zero

Rookie

Sempre fico feliz quando uma notícia da física atinge o grande público, quando a mídia decide que algum descoberta forma uma frase de efeito digna de manchete, e nessa semana não foi diferente. Um grupo de físicos do Instituto Max Planck conseguiu criar um gás a temperatura negativa, abaixo do zero absoluto, e isso provocou manchetes muitas vezes enganosas e, apesar de algumas matérias terem saído interessantes, a maior parte era apenas um agregado de traduções de versões americanas feitas por quem não entende do assunto.

Temperaturas negativas não são novidade na física, elas têm até página na Wikipédia, e pretendo hoje, nesse post, tentar explicar o que queremos dizer com isso, e tentar esclarecer confusões lançadas pelas matérias sensacionalistas de física de folhetim. Para isso, precisamos entender o que é temperatura.

No princípio hesitei se poderia explicar esse tópico sem antes falar de um conceito fundamental da termodinâmica, e de toda a física, a entropia. Temia descobrir, enquanto escrevia, que eu mesmo não entendia o assunto, pois é uma das noções mais escorregadias da ciência. De forma extremamente simplificada, entropia é a medida da desorganização de um sistema. Preciso de um exemplo tão simplificado quanto minha explicação, vou usar um sistema a dois níveis de energia. Dificilmente encontramos algo na vida real que seja isso, mas pouco importa, quero apenas explicar o conceito. Imagine um sistema com $N$ partículas, sendo cada partícula capaz de estar em um estado de energia zero ou em um estado de energia $\varepsilon$.

dois_estados_2Se todas as bolinhas estiverem confinadas no estado zero, esse sistema tem entropia zero. Se todas estiverem confinadas no estado $\varepsilon$, o sistema também terá entropia zero. Mas se elas puderem se mexer, variar de um estado a outro, essa entropia será um valor maior, e positivo, indicando que o sistema não mais possui aquela ordem perfeita de antes e agora é uma mistura estranha de estados. A entropia indica quão bem feita é essa mistura, sendo máxima quando todas as configurações do sistema, todas as combinações de bolinhas em cima e embaixo, são possíveis e igualmente prováveis, ou seja, desordem completa, não posso afirmar nada sobre o estado atual do sistema, ele pode ser qualquer coisa.

A temperatura é a medida de quanto a entropia de um sistema varia quando damos energia a ele: quanto menor a temperatura, mais desorganizado um sistema fica com energia. Naturalmente, quanto maior for a temperatura, menos desordem um sistema ganha com a energia.

O fato da temperatura ser sempre positiva em nosso cotidiano é um reflexo da propriedade natural do aumento de entropia com o aumento de energia, como arrumar sua casa perfeitamente e lançar dentro dela uma ratazana raivosa, o equivalente da energia; dificilmente a casa ficará ainda mais organizada. Assim, apesar de sistemas com alta temperatura ganharem pouca entropia com energia, eles não perdem entropia.

Se deixamos nosso sistema de bolinhas a dois níveis interagir com o meio externo, ele poderá trocar energia com o meio e as bolinhas ganham ainda mais liberdade de subir e descer a ladeira. Se o sistema e o meio externo são muito diferentes quando entram em contato, eles vão trocar energia até que o quanto um sistema é desordenado pelo ganho de energia seja igual ao quanto o outro também é, ou seja, até que as temperaturas sejam iguais.

Isso é reflexo do princípio de máxima entropia, uma noção física que vai além das bolinhas e partículas, ligada profundamente a teoria da informação e probabilidades. Mais uma vez de forma bem simplificada, ele diz que, se você não tem uma boa razão para proibir um estado, o sistema atingirá esse estado e, se não tem uma boa razão para diferenciar dois estados, o sistema atingirá os dois com a mesma probabilidade. Em nosso problema das bolinhas, o sistema trocará energia com o meio externo até que o quanto ele causaria de desordem cedendo energia seja igual ao quanto ele ganharia de desordem ganhando energia, porque dessa maneira a entropia do processo todo (sistema + meio externo) será a máxima possível. Dessa forma, quando as temperaturas são iguais, isso significa que tanto o conjunto sistema + meio externo pode ocupar o maior número de estados possíveis de energia.

Como um gás lançado em uma sala vazia tende a se dispersar, não a se concentrar, porque eu não tenho uma boa razão para impedi-lo de ir para qualquer lugar da sala. Ele tende a ocupar todo o espaço e a chance de encontrar uma partícula em qualquer lugar é a mesma: isso é o princípio da máxima entropia. Se você conectar essa sala a uma outra vazia, pouco a pouco o gás vai ocupando também a outra sala até que todos os estados possíveis sejam ocupados com a mesma probabilidade.

Pelo princípio da máxima entropia, o gás tende a invadir a segunda sala e ocupar todo o espaço. A probabilidade de que ele fique todo na primeira sala é infinitamente pequena.

Se deixamos o sistema acoplado ao meio externo em uma temperatura fixa, ele trocará energia com o meio externo, e a temperatura será o quanto de desordem ele vai ganhar quando ganha energia. Se essa temperatura é baixa, o sistema ganha muita entropia com um pouco de energia. Isso acontece em situações como a de haver todas as bolinhas paradas na posição 0. Dar um pouco de energia significa permitir alguns saltos para o andar de cima, isso bagunçaria o sistema dando bastante entropia a ele. Se o sistema está em alta temperatura, como no caso de um gás quente, dar ainda mais energia não bagunçaria tanto o sistema.

Podemos escrever isso com alguma matemática. A chance de uma daquelas bolinhas estar em um estado de energia $E$ é dada por $\frac{e^{-E/T}}{Z}$, onde $e$ é um número especial entre 2 e 3 e $Z$ é alguém que multiplicamos para que a probabilidade não seja maior que 1 (para quem começou a ver física estatística, essa é a distribuição de Boltzmann!). É fácil ver que a chance de estar no estado de energia 0 é $1/Z$, enquanto a chance de estar no estado $\varepsilon$ é $\frac{e^{-\varepsilon /T}}{Z}$. Isso representa um fato físico famoso: é mais fácil estar em um estado de baixa energia que em um de alta energia. Quanto menor a temperatura, mais difícil é encontrar alguém em um estado de energia alta. Quanto maior a temperatura, mais ambos os estados ficam com probabilidades parecidas. A maior parte dos sistemas físicos funciona dessa exata maneira.

No entanto, se você conseguir ser malandro, como os físicos do Instituto Max Planck, e criar um sistema físico bem patológico tal que estados de energia mais alta são mais prováveis, como você explica usando esse formalismo? Ora, basta dizer que são estados a temperatura negativa. Dessa forma, $\frac{e^{-\varepsilon /T}}{Z}>1/Z$ e você consegue continuar a trabalhar com esses sistemas usando sua matemática favorita.

É porque associamos temperatura a essa taxa de ganho de desordem que podemos interpretar desse jeito estranho. Temperatura não é mais o movimento das partículas, isso ficou com os gases ideais no colegial, ela agora é a medida do ganho da desordem em função da energia. E se um sistema começa a privilegiar estados de energia alta, interpretamos isso como uma temperatura negativa.

Ouvi muito a respeito, inclusive da Wikipédia, sobre a temperatura negativa ser o limite de uma temperatura tão positiva que ela “dá a volta” e vira negativa. Como dizer que os reais são um corpo cíclico me causa urticária, tento explicar o que isso significa. Uma temperatura muito baixa favorece muito estados de baixa energia. Uma temperatura alta não favorece ninguém, e quanto mais alta, menos favorecimento possui. Se atingíssemos a temperatura $+\infty$, teríamos passado de uma situação de favorecimento das energia baixas a não favorecer ninguém. Se fôssemos “além” do $+\infty$, teríamos uma situação que privilegia as altas energias, e é isso que aquela explicação estranha quer dizer. Não gosto dela, e paro a explicação da explicação por aqui.

Resumindo: os cientistas do Instituto Max Planck conseguiram criar um sistema patológico o suficiente para deixar os estados de alta energia mais prováveis que os de baixa energia. Na matemática da física estatística, isso é interpretado como uma temperatura negativa, pois temperatura é o que mede essa preferência por estados de baixa energia. Isso não é nada chocante ou escandaloso, é interessante que eles tenham conseguido isso para um sistema quântico bem complicado, o artigo original está aqui, mas, infelizmente, é mais uma manchete para vender jornal que um grande avanço para a termodinâmica.

Assumo que o post ficou confuso, mas é um tema complicado. Um dia sento e escrevo algo mais claro sobre entropia, no mesmo dia em que tomar coragem para ler a montanha de textos a respeito da interpretação física dela. Precisaria selecionar, ler, escrever, revisar tanta coisa que, em matéria de desordem, deixo exatamente como está.