Arquivo da tag: Eleições

A melhor forma de eleição

Rookie

O governo Temer não anda bem. Atingimos o dígito único em matéria de aprovação e novas delações colocam em xeque a habilidade do governo peemedebista de atravessar o próximo ano. Estamos estudando as entrelinhas da constituição para determinar o que acontece depois que cai o rei de espadas, o de ouros, o de paus e não fica nada. Só de pensar que uma das opções é o FHC ser eleito indiretamente, provavelmente para governar como Imperador-Rei durante 100 dias, faz essa situação toda parecer um episódio do Mundo da Lua.

Já discutimos bastante nesse blog sobre a justiça das eleições (ver meu post sobre eleições indiretas e sobre formas de eleição), mas nunca dei minha opinião de qual era o meu método favorito, como eu gostaria que o presidente fosse escolhido em minha ilha particular. Vamos analisar os principais problemas de nossos métodos de eleição e pensar em uma maneira de driblá-los.

Nosso sistema atual de eleições diretas é realizado em dois turnos, o primeiro dito de escolha e o segundo de eliminação. Tentamos com ele evitar o maior problema de uma eleição a um único turno, que é a multiplicação de candidatos permitindo alguém com 20% dos votos levar a presidência. Mas esse método traz consigo outro problema, que é perfeitamente ilustrado na eleição francesa de 2002, aquela do famoso segundo turno Chirac vs Le Pen.

A França tem dois grandes partidos: LR (centro direita) e PS (centro esquerda). Há também uma constelação de partidos menores, entre eles o FN (extrema direita), cujo porta bandeira era Jean-Marie Le Pen em 2002 ((Desde então foi substituído por Marine Le Pen, MLP, sua filha, aquela que habita meus pesadelos, a não se confundida com My Little Pony ou Multilayer Perceptron)). O primeiro turno das eleições francesas de 2002 trouxe uma surpresa, o voto da esquerda foi dividido em diversos pequenos partidos e o candidato do PS, L. Jospin, ficou em terceiro, fechando o segundo turno como um combate entre Jacques Chirac (RPR na época, o partido depois virou UMP e depois LR) e J-M. Le Pen (FN). Para piorar, diversas pesquisas de opinião apontavam vitória de Jospin sobre Chirac em um possível segundo turno, se ao menos ele chegasse lá.

Em um movimento inédito, a esquerda apoiou Chirac em massa, e em desespero, o equivalente brasileiro ao PSOL, PT, PCdoB e PCO apoiarem Alckmin massivamente para impedir a eleição de Bolsonaro. O resultado do segundo turno era previsível.

chirac_lepenImagine o equivalente disso na competição de 100m rasos. Na Rio 2016, os favoritos ao título eram Bolt e Gatlin. Nada mais justo do que deixar todo mundo correr e ver quem chega na frente. Agora imagine que corredores menores podem aparecer, gente que não tem chance nenhuma ao título dados os resultados anteriores que apresentaram em torneios, e esses corredores ganham o direito de poder puxar Gatlin ou Bolt pelo shorts. Não parece um sistema ideal de avaliar um campeão olímpico, mas é bem próximo do que temos para avaliar presidente.

Qual a solução? Não queremos uma situação parecida, em que Jospin, um candidato com grandes chances de vitória, seja eliminado porque “seu voto” foi dividido entre opções menores da esquerda. Coloco aspas com cuidado, porque o voto não é dele, é do eleitor, mas essa é a percepção que esse raciocínio carrega. Não queremos forçar pessoas a votarem em quem “tem chance”, mas queremos um método em que a inclusão de candidatos menores não influencie no vencedor, essa é nossa primeira exigência.

Imaginemos então a seguinte situação: os candidatos Luís, Geraldo e Jair disputam uma eleição em dois turnos. No primeiro turno, temos Geraldo na frente com 45%, Luís com 30% e Jair com 25%. No segundo turno, contudo, pesquisas apontam que Luís vence Geraldo em um confronto direto. A solução para Geraldo é simples: ele faz um pouco de campanha por Jair, perde alguns votos, e garante que o segundo turno será entre ele e Jair, onde suas chances de vitória são bem melhores. Esse sistema também é absurdo, porque um candidato não deve melhorar sua posição perdendo votos, ou piorar sua posição ganhando votos! Essa é nossa segunda exigência.

O teorema da impossibilidade de Arrow, mencionado em outro post, diz, grosso modo, que nenhum sistema classificatório de candidatos é capaz de satisfazer esses dois critérios. A matemática não está a nosso lado, e a missão parece perdida.

Como todo bom matemático, se você quer violar um teorema, basta quebrar a hipótese certa na engrenagem correta. Eu usei de propósito a palavra classificatório para descrever os sistemas de eleição, porque isso é uma hipótese importante para a tal impossibilidade. Basta não exigir um sistema classificatório e podemos encontrar uma maneira de eleição que não sofra das mazelas que nossas duas exigências tentam sanar!

Ao invés de perguntar aos eleitores quem é o favorito, o que é uma simples classificação com apenas uma vaga, e ainda ao invés de perguntar a ordem de preferência, que é uma classificação mais complexa, passamos uma lista de todos os candidatos ao eleitor. Ao lado de cada nome, duas opções: 👍 ou 👎 . Após os votos, o candidato com mais 👍 ganha, simples assim.

De que maneira isso escapa das garras de Arrow? Cada candidato, em um sentido, compete contra si mesmo nesse método. Se A possui mais 👍  que B, pouco importa se C, D ou E entram na corrida, a ordem de preferência ainda é mantida. E nenhum candidato em sã consciência tentaria aumentar suas chances de voto diminuindo seu número de 👍 , porque isso não funciona. Com um modelo quase facebookiano de eleição, temos, em minha opinião, bastante progresso em relação ao atual, e a complexidade não é muito maior.

Mas ainda não gosto muito desse modelo, podemos fazer melhor. Esse método estimula candidatos a instruírem eleitores a não apenas votar 👍 em si, mas votar também 👎 em todos os outros. Isso porque agrupa na mesma categoria candidatos que de alguma forma toleraria ver na presidência e aquela que eu realmente quero; também agrupa aqueles de que marginalmente desgosto e aqueles que abomino. Essa dicotomia não é saudável, e podemos evitá-la. O modelo fica um pouco mais complicado, mas tenho fé de que não o suficiente.

Como vou atribuir porcentagem e juízo de valores, vamos usar candidatos mais fictícios que Geraldo, Luís e Jair. Sejam Jon, Edward, Cersei e Tyrion quatro candidatos às eleições de Westeros. Cada eleitor receberá uma ficha com os quatro candidatos e, ao lado de cada nome, deve escolher uma nota de 1 a 5; ou uma avaliação dentre as possíveis: muito bom, bom, médio, ruim e muito ruim. Contados os votos, podemos empilhar as porcentagens da seguinte forma:

westeros_eleicao_1

Note que Cersei é a candidata mais polarizadora, ela possui a maior taxa de “muito bom” e a maior rejeição. Em uma eleição a dois turnos, imaginando que o “muito bom” representa o voto do favorito de um eleitor (não necessariamente verdade, alguém pode votar marcando todos como ruim e muito ruim, por exemplo), teríamos Cersei e Jon no segundo turno, com Jon vencendo o segundo turno se eu imaginar que ninguém votaria em um candidato que considera ruim ou muito ruim. Isso não é necessariamente o ideal, porque Jon e Cersei de longe são os candidatos de maior rejeição, mas é um das características mais famosas de nosso sistema atual de eleição.

O método conhecido como voto por aprovação consiste em passar uma linha nos 50% daquele gráfico. O vencedor da eleição será o candidato que possui a melhor avaliação na linha dos 50%. Em caso de empate, analisamos a “barra de avaliação” de cada candidato e o vencedor é aquele cujo ponto médio da barra é o mais alto. Esse sistema é mais simples do que parece, veja o que acontece quando traçamos essas linhas e esses pontos no gráfico.

westeros_eleicao_2

Claramente, Cersei está eliminada. Na barra dos 50% ela atinge a avaliação ruim, pior que nossos três outros candidatos. E como há empate entre esses candidatos na avaliação “médio”, marcamos o ponto médio da barra cor creme e percebemos que o mais alto é o de Tyrion, que é o vencedor segundo esse método.

  • Vantagens e críticas

O método não é perfeito, mas possui muitas vantagens. Em primeiro lugar, ele evita esse pensamento de “votar um muito bom e o resto muito ruim” porque, por exemplo no caso de Tyrion, alguém que votasse muito bom ou bom não faria diferença, ou alguém que ao invés de muito ruim votasse ruim também não influenciaria. Vale mais você usar dessa avaliação para expressar seu voto em toda sua complexidade. Eu, particularmente, votaria Edward muito bom, Tyrion bom, Jon médio e Cersei muito ruim, o que exprime com muito mais clareza minha opinião e me permite contribuir de forma mais completa ao processo democrático.

Esse sistema força eleitores a tomarem uma posição sobre todos os candidatos, o que é tanto uma vantagem quanto uma crítica. O número de candidatos não poderia ser muito alto, e jogado no mundo real esse modelo pode sofrer de maneira amplificada os problemas do analfabetismo político de boa parte da população. Qual avaliação dar a um candidato que não conheço? É uma pergunta complicada.

Por outro lado, ele dá muito mais chance a bons candidatos de partidos menores, porque todos os candidatos devem ser votados. Propaganda negativa nesse contexto não tem muito sentido, pois não existe mais voto para evitar que alguém seja eleito. Cada candidato deve convencer os eleitores de que ele é digno de seu voto, e não simplesmente convencer o povo de que o adversário é um vilão de filme da Disney.

“Mas, em seu exemplo, Edward deveria ter ganhado!”

Essa é uma crítica válida, porque Edward é menos rejeitado que Tyrion, especialmente na área do “muito ruim”. Mas o método atribui a vitória a Tyrion porque ele atribui o mesmo peso à rejeição que a aprovação. Note que 40% dos eleitores acham que Tyrion seria pelo menos bom (bom e muito bom), enquanto apenas 25% dos eleitores pensam isso de Edward. 30% do eleitorado acha que Tyrion é ruim ou pior, enquanto apenas 25% do eleitorado pensa isso de Edward. Como Tyrion ganha na aprovação por um valor maior do que Edward ganha na ausência de reprovação, a vitória vai a ele, essa é a ideia do centro da barra.

Um item suplementar, que seria um sonho nesse método, é colocar uma cláusula extra que diz que se todos os candidatos na linha dos 50% são classificados como ruim ou muito ruim, novas eleições deveriam ser chamadas e esses candidatos não poderiam se reapresentar. Visto que eles, em absoluto, são vistos como inadequados para representar o país, não podem governar.

 Esse método é muito bonito, e profundamente utópico. Não imagino que algum dia o Brasil adotará algo parecido, nem se qualquer outro país o fará em qualquer futuro. Ainda, vale a pena apreciar e imaginar o que seriam o processo eleitoral e a política se esse fosse o método, como seriam a propaganda, a estratégia, a tentativa de convencer o povo de que aquele candidato é, em absoluto, muito bom. Quando termino esse devaneio, essa contemplação do Brasil que não existe, volto à realidade e percebo que a discussão não está no método, mas em se haverá ou não eleição, voto, democracia e Brasil em 2017 e 2018. Comparando com o voto por aprovação, votar em um candidato parece pouco; no contexto atual da política, encontrar em quem votar parece muito.

E nossos filhos nos chamarão de bárbaros

Rookie

election

É difícil explicar a cadeia de sentimentos que me atingiu com a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos. Em primeiro lugar, feriu meu brio estatístico, eu estava disposto a apostar dinheiro alto em Hillary pelas projeções e pesquisas feitas exaustivamente por matemáticos e cientistas americanos, eles adoram essas coisas; e foi outro Brexit. Em segundo lugar, pelo desespero trazido pela realização que, Europa ou EUA, a esperança não é mais capaz de vencer o medo.

Sou, e sempre fui, um otimista. Sempre acho que meu ano presente é o melhor de minha vida, que a sociedade caminha em uma direção mais aberta, pluralista, receptiva e tolerante, que diversos direitos conquistados por minorias são agora inalienáveis e que a questão do racismo, da misoginia e da intolerância será naturalmente resolvida pela passagem inexorável das horas, pela morte, de velhice e pacífica, dessa geração criada com outros modos e outros costumes. Depois de hoje, não sei se sou capaz de levantar essa bandeira com tanta convicção.

É difícil generalizar esses eleitores, mas vou tentar assim mesmo. Sinto como se eles quisessem surrar com violência o establishment, Washington no caso dos americanos, e Trump era o punho. Sinto também, na Inglaterra e nos EUA, como se esse voto fosse o último grito de uma maioria branca que percebe no horizonte o fim de sua hegemonia e grita, esperneia, porque “cultura do país” e “sua cultura” não serão sinônimos óbvios. “Cultura branca” não é algo que existe, chamamos isso nesses países, infelizmente, de apenas cultura.

Porque ainda que tanto o Brexit quanto a eleição de Trump estejam fortemente correlacionados a raça, escolaridade e idade dos eleitores (brancos, sem ensino superior e acima de 50 anos votaram em bloco para o sucesso de ambos os cataclismos),  sei que o silêncio de um dos lados é tão culpado quanto o barulho do outro.

Eu me considero um liberal, em um sentido bem vago da palavra. Posto bastante sobre política, então evito falar de minhas opiniões para não perder credibilidade, mas Donald Trump não é exatamente uma questão de opinião. Essa vitória chocante é um evento nauseante na história da democracia americana, um homem carregado ao poder por forças de nativismo, nacionalismo, misoginia e racismo. Trocam o primeiro presidente negro por um charlatão que sugou apoio de áreas xenofóbicas e de supremacia racial branca. É impossível reagir a esse evento com algo menor que repulsa. E ainda, apesar de todos os escândalos, apesar de todos os absurdos, os eleitores odiaram mais o que ele dizia combater do que seus hábitos horripilantes, e pagaram para ver o que estava “atrás da porta número 3”, como se em um programa de auditório, ao invés de uma mulher competente com história de vida pública, talvez história até demais.

Li uma vez um artigo no Le Monde cujo título me marcou bastante, ele dizia: “Et nos enfants nous appelleront: ‘barbares'”, ou, na minha tradução fraca, o título desse post. Ele me faz pensar em qual é o papel de alguém que se diz progressista, alguém que deseja estar do lado certo da história. Não é apenas, como alguns pensam, defendem direitos estabelecidos e claros, mas buscar novos. Nossa tarefa, nessas derrotas tenebrosas, nesses tempos sombrios, é erguer a cabeça e continuar lutando contra os males de hoje e de amanhã. Meu objetivo é não me tornar como minha avó, uma pessoa maravilhosa e mulher progressista em seu tempo, mas que não era capaz de admitir que Rui Barbosa era pardo, tampouco Machado de Assis.

Pensamos na escravidão, na ditadura militar, na repressão da era Vargas, na segregação americana e no Apartheid africano, no papel das mulheres durante toda a antiguidade até mais ou menos 1970, em homossexuais sendo castrados quimicamente, condenados à morte, em transexuais atravessando uma vida de repressão e culpa, e pensamos: “Bárbaros!”. Nossa tarefa não é apenas combater os males de hoje, não é apenas ter um amigo negro, ou um chefe gay, e achar que racismo e homofobia não se aplicam a você. Nossa tarefa é pensar: “por que meus filhos me chamarão de bárbaro?”, como eu chamo minha avó, e ela chamava, provavelmente, sua avó. Respondendo essa pergunta, você descobre o mal a combater.

Eu queria poder postar algo científico, estatístico, sobre a vitória de Trump, analisando detalhes da sondagem e apontando os pontos fracos, mas o fato é: ninguém sabe o que aconteceu. Explicações sobram, mas quando já se sabe a resposta fica bem mais fácil. Talvez as pessoas que mais votariam no Trump também seriam as que mais desconfiariam da mídia golpista que ligaria para fazer uma sondagem, o que criou uma sub-representação de trumpistas em três ou quatro estados chave, o suficiente para o sistema americano colapsar. Prometo um post sobre a forma de governo americana, e sobre como ela é particularmente ruim, para aparecer semana que vem.

É bom estar de volta, queria que as circunstâncias fossem outras.

Eleições indiretas e o conjunto de Cantor

Rookie

Timothy Gowers é provavelmente um dos maiores matemáticos vivos. Recentemente em seu blog, propôs uma explicação matemática para o problema americano de representatividade eleitoral; achei fascinante e decidi explorar um pouco essa ideia. Vamos falar hoje sobre eleições indiretas e sobre como posicionamento é, muitas vezes, mais relevante que números.

Os Estados Unidos possuem um sistema eleitoral indireto confuso o suficiente para merecer um diagrama da Folha de São Paulo a cada eleição americana. É um sistema a dois níveis com algumas sutilezas, cada estado tem seu peso, alguns estados decidem aplicar todo seu peso no candidato vencedor enquanto outros aplicam pesos proporcionalmente ao resultado de suas eleições. Veremos que ainda nesse caso a poucos níveis alguns problemas curiosos podem surgir.

Existem instituições com mais níveis de eleições indiretas, como, por exemplo, a Igreja Presbiteriana do Brasil. Nela, membros de uma igreja elegem alguns dentre si para serem os presbíteros, os presbíteros de várias igrejas se reúne; para eleger o supremo concílio e o supremo concílio elege seu presidente. Nessa lógica, há quatro níveis entre o presidente do supremo concílio e um membro da igreja. Esse método possui suas vantagens, a alternância de poder certamente é um antídoto ao culto à personalidade tão danoso ao proposto por muitas religiões; mas veremos que uma das consequências imediatas das eleições indiretas é a possibilidade de manipulação por posicionamento.

Vou usar um exemplo simples: o triunvirato. Imagine um país em que o presidente é eleito por três “sub-presidentes”, e precisa de dois dos três votos para ser eleito. Cada um dos sub-presidentes é eleito por três sub-sub-presidentes, e cada um precisa de dois dos três votos de seus sub-sub-presidentes para ser eleito. Imagine que isso acontece indefinidamente, até que toda a população foi contabilizada e contada nesse processo.

Para eleger o presidente que quero, preciso apenas ter na minha mão 2 dos 3 sub-presidentes, basta que eu eleja os sub-presidentes certos para realizar meu plano. E para eleger cada um deles, preciso ter sob minha influência 4 sub-sub-presidentes, dois para cada. É fácil perceber que em um sistema de $k$ níveis de eleições indiretas eu preciso apenas convencer um múltiplo de $2^k$ para meu projeto, enquanto a população, ao todo, é um múltiplo de $3^k$. Com alguns níveis, esses valores ficam completamente diferentes! Com dois níveis eu precisaria apenas de $\frac{4}{9}$ dos votos para eleger o presidente, menos da metade da população, sendo que eu estabeleci um critério mais exigente que o das eleições convencionais, exijo dois terços dos votos para eleger qualquer pessoa! Com quatro níveis, no caso da igreja, bastaria apenas $\frac{16}{81}\approx 20$% dos votos totais.

Esse sistema do triunvirato é familiar aos matemáticos, é conhecido como o conjunto de Cantor. Um dos melhores testes para um teorema em teoria da medida é aplicá-lo a um conjunto doentio e ver se ele ainda vale, e o de Cantor é o exemplo mais tradicional de quebra-teoremas nessa área. Para entender o que é esse conjunto de elementos, comece com o intervalo $[0,1]$ e tire o “terço médio”, ou seja, divida em três e tire o pedaço do meio. Com os pedaços que sobraram, divida cada um em três e tire o terço médio. Repita isso até cansar. Os elementos que sobrarem formarão o conjunto de Cantor:

cantorsetÉ fácil ver que isso é exatamente nosso sistema de votação. A primeira barra é o presidente, a segunda são os sub-presidentes que devo convencer (o do meio posso ignorar, não preciso dele), a terceira são as pessoas que preciso convencer para que os de cima sejam eleitos. A quantidade de linha que resta é o quanto em população, proporcionalmente, preciso convencer para eleger o presidente. Quanto mais níveis de eleições indiretas, menos população eu preciso convencer. No conjunto de Cantor, a quantidade de linha que sobra é cada vez menor, dizemos que a medida do conjunto é nula quando o número $k$ é infinito.

Esse problema é mais grave do que se imagina. Se quiséssemos saber quantas pessoas teríamos que convencer para eleger o presidente, basta tomar a população total e ir subtraindo aqueles que não nos interessam. No primeiro nível, subtraímos logo $\frac{1}{3}$ do eleitorado, que votaria no vice-presidente que não nos interessa. Analisando as vice-presidências, poderíamos excluir $\frac{1}{3}$ de cada uma delas. Como cada uma delas já é $\frac{1}{3}$ do total, isso seria o equivalente a subtrair $\frac{2}{9}$. No próximo nível, é fácil ver que teríamos que subtrair $\frac{4}{27}$ da população. Ao todo, essa soma é:

\[ \frac{1}{3} + \frac{2}{9} + \frac{4}{27} + \cdots + \frac{2^n}{3^{n+1}} = 1 \]

A afirmação acima você pode verificar com sua fórmula favorita de somas de progressões geométricas infinitas. O resultado final é que teremos excluído todos os habitantes! Claro, isso é um absurdo decorrente de levar a soma ao infinito, de achar que há níveis infinitos de votações, o que isso realmente quer dizer é que aumentar o número de níveis do triunvirato significa se aproximar dessa realidade distópica em que uma minoria ínfima é capaz de eleger o presidente de uma democracia.

Os Estados Unidos são o exemplo mais gritante de práticas de “posicionamento” de eleitores para garantir a eleição indireta. Em nível regional, para as eleições de parlamentares, essa tática é chamada de Gerrymandering. A página da Wikipédia faz um bom trabalho na explicação, e as imagens são assustadoras: a redefinição de fronteiras para garantir um voto republicano ou democrata seria capaz de explicar a estabilidade de certos governantes; gente que pode quase levar o país à falência por um jogo político, com a garantia de reeleição porque o viés cultural de sua região é tão grande que não há o que temer.

Nós, contudo, temos o que temer. Diretas já não foi apenas um movimento social, foi também estatístico; representatividade indireta é sempre uma solução arriscada e falha quando o objetivo é transferir preferências pessoais a coletivas. Nos EUA, o resultado são os swing states, estados capazes de definir a eleição, ganhando por isso muito mais atenção na campanha política e deixando outros estados, incluindo Nova Iorque e Texas, órfãos de política nas presidenciais. A solução é simples: uma pessoa, um voto, e uma conscientização da população sobre o processo político. Contudo, esse blog nem sobre isso é, os fatores são muitos, a soma é quase infinita, mas acredito, de verdade, que converge.

A pior forma de governo

Rookie

As eleições na França tiveram há pouco sua conclusão, com a vitória do socialista François Hollande, e logo as eleições americanas começarão. Eu conversava com um amigo francês a respeito, ele, em um não raro surto nacionalista, dizia ser raro encontrar um país com uma democracia tão funcional quanto a francesa, em que candidatos em igualdade de condições (mesmo tempo de propaganda eleitoral, por exemplo) são avaliados de forma justa e o escolhido é o favorito da população. Comparava esse sistema ao confuso método americano de eleições indiretas, que pode gerar aberrações estatísticas como a estranha eleição de Bush sem a maioria absoluta da população. Ainda, argumentei que o escrutínio francês não é perfeito, o método de eleição em dois turnos não é ideal. Ele perguntou qual seria, então; e a resposta é simples, e longe de intuitiva: nenhum método é justo.

Se Churchill disse que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que já foram tentadas, o post de hoje é para convencê-los de que até em um caso bem simples a democracia não possui resposta fácil, a justiça nem sempre é evidente e uma eleição possui fatores que vão além de músicas contagiantes, propagandas elaboradas e discursos violentos.

Somos confrontados diversas vezes com situações em que uma eleição deve ser realizada, não damos a devida atenção ao método do escrutínio. Digo que não apenas ele amplifica ou ajuda um resultado, muitas vezes a forma de escrutínio determina o vencedor. Para não forçar meu argumento, vou listar os métodos mais tradicionais de escrutínio, todos baseados em sistemas existentes:

1º Método: eleições em um único turno. Inspirados em sistemas de democracia pequena, como a eleição para “chefe do grupo” ou para o diretório de estudantes de uma universidade, podemos apenas contar, em uma votação com uma opção apenas, quem tem mais votos e decidir que ele será o escolhido.

2º Método: eleições em dois turnos. Inspirados nas eleições francesas e brasileiras, podemos realizar uma primeira votação e, selecionados os dois melhores, podemos realizar um segundo turno e eleger vencedor o que obtiver então mais votos.

3º Método: atribuição de pontos. Inspirados nas eleições legislativas australianas, podemos atribuir pontos a suas preferências: 5 pontos ao favorito, 3 ao segundo favorito, 1 ao terceiro lugar e 0 ao que não querem de jeito nenhum. O candidato que ganhar mais pontos é eleito.

4º Método: contagem de confrontos. Inspirados nas eleições americanas, com um sistema um pouco diferente, podemos pensar em um sistema de “confronto” entre candidatos. Quantas vezes o A é preferido em relação ao B? E ao C? E ao D? Após todas essas comparações, ou confrontos, somamos o “placar” de cada candidato e o que tiver vencido mais confrontos é o eleito. Em outras palavras, é como simular todos os “segundos turnos” possíveis e eleger o candidato que vencer mais segundos turnos.

Todos esses métodos são usados em algum sistema democrático de comparação na vida real, não inventei nada. Ainda, digo a vocês que é impossível estabelecer um vencedor único, aliás, consigo situações em que é impossível encontrar um vencedor “justo” da eleição. Se você considera esses quatro métodos válidos, sigo contando a história de um país bem pequeno.

Apresento a vocês Pequenolândia, um país de dez habitantes que quer eleger seu presidente (não confundir com Pequenópolis, oficialmente cidade natal de Clark Kent). Quatro candidatos se apresentam, A, B, C e D. Cada cidadão possui para si uma ordem de prioridade na escolha dos candidatos, e eu apresento essa ordem em forma de tabela:

Eleitor 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
A A A A B B B C C D
D C D D C C C D D C
B D B B D D D B B B
C B C C A A A A A A

A constituição de Pequenolândia, contudo, não está escrita, eles precisam de um presidente para isso. Sem saber como realizar as votações, os habitantes de Pequenolândia se inspiram nas diferentes formas de classificação eleitoral pelo mundo, e, decididos a exercerem plenamente a democracia, realizam as eleições com os quatro métodos acima, e comparam resultados.

O primeiro método dá vitória ao A, preferido de quatro habitantes, vence os demais, cujas preferências são três, dois e um. O segundo método selecionaria o A e o B para um segundo turno, e podemos ver que o B vence o A na preferência dos eleitores que não votariam inicialmente neles, o que daria a vitória ao B em uma eleição a dois turnos.

Contando os pontos pelo terceiro método, teríamos o A com 20 pontos, o B com 21 pontos, o C com 25 pontos e o D com 24 pontos, sendo a vitória por pontos corridos claramente do candidato C. Se contarmos os confrontos, o A vence apenas 12 confrontos (4 vezes cada candidato), o B vence 15 (6 vezes o A, 6 vezes o C e 3 vezes o D), o C vence 16 (6 o A, 4 o B, 6 o D) e o candidato D vence 17 (6 o A, 7 o B e 4 o C) confrontos, sendo claro que a vitória pertence ao candidato D. Pequenolândia terá, como resultado de sua eleição, anarquia completa.

Esse pequeno exemplo ilustra como métodos reconhecidos e consagrados pelo uso na democracia não apenas geram resultados diferentes, eles determinam o vencedor. Cada método elegeu um candidato, e nenhum deles pode ser acusado de ser injusto, todos são usados em eleições, campeonatos e torneios.

Uma resposta otimista seria admitir que existe um método correto e justo, apenas que não é um desses que listei; mas os matemáticos já se encarregaram de arrasar esse otimismo com um sonoro não. O teorema da impossibilidade de Arrow afirma que quaisquer critérios justos que sejam escolhidos, com hipóteses matemáticas exatas de o que ele chama de justiça (todos os critérios acima satisfazem as hipóteses de Arrow), sempre é possível encontrar uma lista de preferências que eleja dois candidatos diferentes com métodos justos. De forma simplificada, nenhuma eleição é justa, Pequenolândia terá que escolher um método antes de escolher um presidente (diferentemente do Brasil em 1988). Em outras palavras, é impossível, de uma lista genérica de preferências, obter de forma inequívoca quem será o presidente.

Em um exemplo atual, e mais concreto, este artigo (agradecimentos a Guilherme Mazanti pelo link), infelizmente em francês, atesta um fato surpreendente. Nessas eleições francesas, o candidato François Bayrou, quinto colocado no primeiro turno, ganharia de qualquer oponente em um combate direito (4˚ método); se participasse, ele ganharia qualquer segundo turno! Ora, como pode um candidato preferido por toda a população a qualquer outra opção não apenas não ser o presidente, mas ser quinto lugar nas pesquisas? Eis um dos resultados impressionantes do teorema de Arrow, colocando em uma perspectiva diferente a afirmação de meu amigo, até que não deve ser tão difícil encontrar eleições mais justas que aquelas que não elegem o favorito da população frente a qualquer outra opção.

Ainda, quanto a meu amigo francês, ele pode ficar tranquilo. Diz-se que eleições justas são pleonasmo, pois se não fosse justa não seria eleição; Arrow nos garante, nada de pleonasmo, eleições justas são, na realidade, um paradoxo.