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As condições de Tchebychev

Geek

O post de hoje não é nada longo, mas um resultado que já me ajudou muitas vezes e nunca o vi em outro lugar além de no livro do Demidovich. E como todo o resto desse livro, ele não demonstra, então nunca vi uma justificativa para uma palavra específica daquele resultado, que desde sempre me atormenta. Um dos motivos de não ter encontrado, acho, foi o fato de Tchebychev ser escrito cada vez com uma ortografia diferente, de acordo com os caprichos do autor ou editor, o que escrevo é respeitando a grafia da tradução que tive do Demidovich.

Aos que não conhecem o livro, ele é um monstro russo de mais de mil exercícios espalhados pelas matérias de cálculo, é como uma tábua de multiplicação para o cálculo diferencial, um excelente treinamento de Kumon a quem quer ficar rápido nessas coisas. Ainda, nele encontrei um resultado simples e bem interessante, que hoje compartilho convosco.

Integrando funções na mão, sempre podemos nos deparar com a possibilidade de estar tentando realizar o impossível: encontrar uma primitiva a uma função que não possui primitiva. Poucos cursos de cálculos dão a devida atenção a essa diferença: primitivização e integração não são a mesma coisa. Enquanto é famoso o fato de que nem toda função integrável possua primitiva ($e^{-x^2}$ é o exemplo mais clássico), encontrar uma função F que derivada dê f (o processo de primitivização) não garante que a função seja integrável, apesar dos rumores. Esse exemplo no link é um pouco trabalhoso, e bem poderoso, é uma função com primitiva que não é integrável em lugar nenhum, um contra-exemplo bem interessante.

Mas não consigo me lembrar de nenhum teorema que consiga me dizer quando uma função possui ou não primitiva elementar, ou seja, quando vale a pena sair tentando transformações, integrações por partes ou separações de polinômios em uma função que não me dá chance de integrar, que não possui uma primitiva suficientemente simples para ser encontrada com minhas técnicas baratas de cálculo I. E as condições de Tchebychev são o único teorema desse tipo que já vi:

Condições de Tchebychev: Seja a integral:

\[\int x^m(a+bx^n)^pdx\]

Então esta integral pode ser expressa por meio de uma combinação finita de funções elementares somente nos seguintes casos:

  1. Quando $p$ é inteiro.
  2. Quando $\frac{m+1}{n}$ é um número inteiro. Nesse caso, use a substituição $a+bx^n = y^s$, onde $s$ é o denominador de $p$.
  3. Quando $ \frac{m+1}{n}+p$ é um número inteiro. Nesse caso, use a substituição $ ax^{-n}+b = y^s$, onde $s$ é o denominador de $ p$.

A palavra que me intriga nesse resultado é o somente, pois nunca vi teoremas ou lemas com manobras para provar que uma função não possui primitiva elementar, mas isso provavelmente é ignorância minha. Apesar de não conhecer as engrenagens desse teorema, o resultado é bem útil, e salvou-me a vida vez ou outra, possuindo um ar de mistério que, apesar de me incomodar, ainda me encanta um pouco.

O famigerado laplaciano

Geek

O terceiro semestre de cálculo na faculdade é inesquecível. Se o seu curso foi parecido com o meu, você atravessou integrais duplas, triplas, de linha e de superfície, teoremas de Gauss, de Green e de Stokes, todas aquelas parametrizações e todas aquelas integrais. Não são poucas as áreas na física que usam esses conceitos, em especial a mecânica dos fluidos e o eletromagnetismo. As aplicações são tantas que, muitas vezes, as demonstrações dos teoremas e representações dos elementos dessa teoria deveriam ser tão naturais para nós quanto ver água descendo o ralo, mas nosso professor de matemática dificilmente está interessado em água descendo o ralo e acaba sacando da manga exemplos não tão intuitivos; meu professor de sistemas dinâmicos, por exemplo, achava a teoria mais clara quando a aplicava a teoria dos números, o que era para ser uma explicação do pêndulo duplo acabava virando o estudo da função “menor inteiro” para provar algum teorema de Fermat.

Todas essas operações têm uma interpretação física bem clara e bonita, mas o laplaciano, esse incompreendido, sempre escapa aos professores de cálculo. Tentar explicá-lo como “o divergente do gradiente” é dar um nó nos conceitos. Você precisa imaginar a taxa de dispersão de um campo que aponta para a direção de maior crescimento, isso me dá dor de cabeça apenas em tentar e não me traz nenhuma ideia clara e física do que é $ \nabla^2 T$.

Nessa hora, vale mais voltar às raízes do cálculo e tentar atacá-lo com métodos finitos, ou seja, fingir que a derivada é apenas um quociente da forma $ \frac{\Delta T}{\Delta x}$. Isso é bem feio e eu jamais faria isso em uma demonstração séria, mas é a técnica padrão para uma resolução numérica da equação de Poisson ou de Laplace, então pode nos ajudar. Se eu decompuser o espaço em intervalos de $ \Delta x_i$ e tomá-los iguais e no valor da unidade, a derivada discretizada torna-se $ x_{i+1}- x_i$. A segunda derivada será apenas tomar esse valor e subtrair ao da derivada do ponto anterior, ou seja, $ x_{i+1}- x_i – x_i + x_{i-1} = x_{i+1} + x_{i-1} – 2x_i$. Esse é um método finito bem adequado para calcular numericamente a segunda derivada. Em uma dimensão, ela coincide com o laplaciano.

Se o meu campo fosse em duas dimensões, eu poderia representar a discretização do meu campo com dois índices, cada ponto seria da forma $ x_{i,j}$. A segunda derivada em uma direção seria a expressão acima variando o $ i$ e na outra direção seria a variação em $ j$. O laplaciano, soma das segundas derivadas cartesianas, seria: $ x_{i+1,j} + x_{i-1,j} + x_{i,j+1} + x_{i,j-1} – 4x_{i,j}$.

Se essa expressão ainda não lhe diz nada, experimente dividir por 4. Você terá:

\[\frac{1}{4}\nabla^2X\approx \frac{x_{i+1,j}+x_{i-1,j}+x_{i,j+1}+x_{i,j-1}}{4} – x_{i,j}\].

Agora parece mais claro. O laplaciano é proporcional à diferença entre o valor em um ponto e a média de seus vizinhos. Isso nos leva à ideia de concentração, se o laplaciano for muito negativo em um ponto, podemos entender que o valor do campo nesse ponto é muito maior que a média de seus vizinhos, ou seja, sua vizinhança apresenta um descrescimento alto em alguma direção que está puxando a média para baixo.

Encontramos essa ideia na física em diversas circunstâncias. Uma onda, por exemplo, é um sistema que representa “coesão” entre seus elementos, puxe uma ponta de uma corda para cima e para baixo e esse puxão irá se propagar pela corda. O que acontece nesses sistemas coesos é que cada elemento é fortemente puxado por seus vizinhos e supomos que todos os vizinhos puxam igualmente, ou seja, o elemento sobe se a média dos vizinhos estiver acima dele e desce se a média dos vizinhos estiver abaixo dele. Não somente isso, a força com que ele é puxado deve ser proporcional a essa diferença. E com força eu digo aceleração, já que nem todas as ondas são mecânicas e o conceito de força não se aplicaria tanto a elas. Em outras palavras: a aceleração do elemento será proporcional à diferença entre sua altura e a altura média de seus vizinhos. Não por menos, a equação de onda deve ser:

\[\frac{d^2X}{dt^2}+k^2\nabla^2X=0\]

E isso explica a equação de onda ser o que é. Todo sistema coeso deve obedecer a esse sistema, toda perturbação sua propagar-se-á de acordo com essa equação, desde que cada elemento seja puxado ou empurrado por seus vizinhos igualmente.

Folheando um livro de física-matemática, você pode se deparar com teoremas como “As soluções da equação de Laplace não possuem máximo ou mínimo locais no interior de seu domínio, apenas nas bordas.”. Pensando um pouco, isso é bem evidente. Se $ \nabla^2 X = 0$, que é a equação de Laplace, então todo ponto deve ser a média de seus vizinhos, pois a diferença entre eles é sempre nula. Ora, nenhuma média pode ser maior ou menor que nenhuma de suas parcelas, então um ponto de uma solução da equação de Laplace não pode mesmo ser nem mínimo, nem máximo.

E, com isso, fica bem mais fácil entender algumas propriedades e algumas fórmulas que contêm esse triângulo ao quadrado. Em cálculo de várias variáveis, as melhores analogias costumam estar na mecânica dos fluidos ou no eletromagnetismo, não hesite em procurar.

Infinitos

Rookie

Certa feita, conversava com meu cunhado, um publicitário, e o assunto naturalmente convergiu aos números transfinitos. Como ele havia tentado me explicar como poderia existir uma propaganda tal qual a da Dolly, tentei convencê-lo de que nem todos os infinitos são iguais, alguns são maiores que outros. A explicação foi algo parecida com isso: quantos elementos tem o conjunto dos números naturais $(1, 2, 3, 4, \ldots)$? Infinitos, claro. E o dos números pares? Infinitos também. E qual tem mais? A primeira ideia é a de que os naturais são mais numerosos, porque eles não só contêm os pares mas têm outros caras juntos com eles, os ímpares. Mas pensando melhor, se os dois são infinitos, como falar que um infinito é maior que outro? Esse foi o problema de Cantor. E por ele mesmo a solução proposta foi:

“Dois conjuntos têm a mesma quantidade de elementos se há entre eles uma relação um para um entre seus elementos, ou seja, uma relação que corresponda cada elemento de um conjunto a outro sem repetir e sem faltar ou sobrar ninguém de nenhum dos conjuntos”

A ideia de Cantor é a ideia da quadrilha. Imagine-se olhando uma quadrilha de festa junina com MUITAS pessoas. Perguntam para você quantos homens tem, você responde “muitos”. Perguntam quantas mulheres, você responde “muitas”. Então perguntam qual conjunto, homens ou mulheres, tem mais elementos. Como você não consegue contar, avisa no microfone:

“Gente, formem pares os homens com as mulheres!”

Se não sobrar nenhum homem e nenhuma mulher, você pode dizer que os dois conjuntos tem a mesma quantidade de elementos. Pronto, você não precisou contá-los! Bastou formar uma relação um para um e verificar que não sobrou nem faltou ninguém. Com os números é a mesma coisa. Se eu gritar: “Formem duplas, cada número natural com seu dobro!”, as duplas vão se formar:

1  com  2

2  com  4

3  com  6

4  com  8

E assim por diante. Será uma relação um para um, nenhum natural ficará sem dupla e nenhum número par ficará sobrando. Assim: “Os naturais e os pares têm a mesma quantidade de elementos”.

Mas isso você já imaginava, já que os dois são infinitos. Galileu já tinha usado esse argumento para dizer que todos os infinitos são iguais. Mas Cantor percebeu que isso não era exatamente verdade. Você consegue provar que os naturais e os racionais (todas as frações) têm a mesma quantidade de elementos? Sim, consegue! Basta você perceber que: “Todo conjunto infinito que é possível enumerar tem a mesma quantidade de elementos que os naturais”. Claro, se você consegue colocar todos os elementos em uma fila e dizer quem é o primeiro e quem é o próximo, basta fazer o primeiro corresponder com o 1, o segundo com o 2 e assim por diante. Chamamos estes conjuntos de “Enumeráveis”. Os naturais, os inteiros e os racionais são enumeráveis.

Mas os reais não são. Por quê?

Primeiro vamos mostrar como podemos enumerar as frações. Claro que eu não vou pensar em quem é a “menor fração” ou “a fração mais perto de zero” para ser a primeira, porque eu nunca vou encontrar. Se eu eleger uma para ser a menor, sua metade será menor ainda, não adianta. Vou enumerar de um jeito diferente. Minha primeira fração da lista será $\frac{1}{1}$. As próximas serão aquelas cuja soma do numerador com o denominador dá 3: $\frac{2}{1}$ e $ \frac{1}{2}$. As próximas serão aquelas cuja soma dá 4: $\frac{3}{1}$, $\frac{2}{2}$ (dispensável, pois já coloquei $\frac{1}{1}$ na lista) e $frac{1}{3}$. As próximas: $ \frac{1}{4}$, $\frac{2}{3}$, $\frac{3}{2}$, $\frac{4}{1}$. Com isso eu consigo listar TODAS as frações sabendo dizer quem é a primeira e quem é a próxima da lista. Eu provei que o conjunto dos racionais é enumerável e, portanto, tem o mesmo número de elementos que os naturais.

E por que isso não funciona com os reais? Primeiro precisamos entender o que são os números reais. São todos aqueles números com qualquer coisa na sua parte decimal. Os números racionais são todas as frações, ou seja, todos os números com parte decimal periódica. A fração $\frac{1}{7}$ é, em decimal, 0,142857142857142857…, com o 142857 se repetindo. Os números irracionais são aqueles com parte decimal não periódica, como as raízes que não são exatas ou o número $\pi$. São números cuja expansão decimal é imprevisível, nunca se sabe qual o próximo algarismo deles. E isso deixa a enumeração deles impossível, vamos ver porquê.

Vamos tentar enumerar eles. Isso vai ser difícil, então vamos supor que nós já conseguimos! Vamos falar que enumeramos todos os números de 0 até 1. A nossa lista vai ser:

\[0,a_1 a_2 a_3 a_4 a_5 a_6 a_7 \ldots a_n \ldots\]

\[0,b_1 b_2 b_3 b_4 b_5 b_6 b_7 \ldots b_n \ldots \]

\[0,c_1 c_2 c_3 c_4 c_5 c_6 c_7 \ldots c_n \ldots \]

Em que os a’s, b’s e c’s são os algarismos dos números. Vamos fingir que isso seja uma lista com todos os números reais entre 0 e 1. Mas veja só. Imagine que eu pego um número que:

Seja diferente do primeiro na primeira casa.

Seja diferente do segundo na segunda casa.

Seja diferente do terceiro na terceira casa.

\[\ldots\]

Seja diferente do n-ésimo na n-ésima casa.

\[\ldots\]

Como eu posso escolher entre 10 algarismos diferentes, então eu posso criar um número que seja diferente do primeiro na primeira casa (tenha um algarismo diferente dele nessa casa), diferente do segundo na segunda e assim por diante. Esse número certamente é um número real entre 0 e 1, mas é diferente de TODOS os que estão na minha lista, pelo menos em uma casa (eu forcei isso). Então ele não está em minha lista, mas ele está entre 0 e 1 e eu disse que minha lista enumerava todos os números entre 0 e 1! Isso significa que: “Toda tentativa de enumeração dos reais deixará de fora um número real”, ou seja, os reais são não-enumeráveis! Então o conjunto dos reais não tem uma relação um a um com os naturais!

Provar que esse é um infinito maior é outra história, mas, se você está convencido de que há infinitos diferentes, não deve ser difícil se convencer de que os reais são mais numerosos, nesse sentido que definimos. Em uma quadrilha, não apenas os reais sobram se fazem pares com os naturais, infinitos reais dançam com vassouras nessa brincadeira.