Arquivo mensais:novembro 2012

A matemática da má-fé

Rookie

Ressuscitaram recentemente em uma corrente de email, e um pouco no Facebook, o caso da ponte do rio Guaíba. O cálculo, feito por um suposto matemático, compara o custo da obra, avaliado em R$ 1,16 bi, com o de uma ponte chinesa, que custaria aproximadamente o dobro, mas cuja extensão seria doze vezes maior e seria terminada no mesmo tempo.

Tal comparação foi inicialmente motivada por um post de Augusto Nunes, da revista Veja, cujo link hesitei em colocar para não dar mais visualizações em sua página do que ele merece. Reproduzo a tabela, que originalmente foi publicada no jornal ZeroHora:

Os comentários que seguiram, tanto no blog de Nunes quanto no Facebook, são dignos de exposição no brilhante classemediasofre, seguindo a linha do: “ISSO É BRASILLLLLL”. O que seria apenas uma pequena indignação de minha parte merece atenção deste blog, porque reflete uma das falácias mais tristes da ciência, a matemática da má-fé.

O artigo de Nunes faz uma conta simples, uma divisão, compara os quocientes, reproduzindo a tabela do suposto matemático, e acaba atacando algum partido político pelo resultado que encontrou. Fazer uma divisão é fácil, difícil é justificar a divisão. Para que essa seja uma comparação justa, precisamos das seguintes hipóteses:

  • O custo de uma ponte é linearmente proporcional a seu comprimento.
  • O custo de uma ponte é invariante por mudança de país.
  • O custo de uma ponte é invariante pelo tipo de ponte, já que todas as pontes são iguais.

Assim, e somente assim, uma simples divisão comparativa bastaria para atacar o partido político em questão, se de fato a construção foi orquestrada por ele.

É desnecessário dizer que essas três hipóteses são falsas. A primeira ignora a diferença nos custos da fundação e da ponte, para começar, entre outros fatores que me escapam pela minha falta completa de formação em engenharia civil, mas que dificilmente escapam à lógica elementar de que uma ponte de três metros não custará um milhão de reais. A segunda ignora os custos de mão de obra, os direitos trabalhistas referentes à mão de obra, o preço do material, a disponibilidade do material no país; eu poderia passar os próximos parágrafos apenas nessa lista. O terceiro assume a simplicidade extrema do argumento de que ponte é ponte, rio é rio, lago é lago e que o orçamento de uma obra de proporções colossais não deve ser tão mais difícil que uma lista de compras, os detalhes não são tão importantes.

No auge de seu delírio, o colunista completa triunfante: “Os números informam que, se o Guaíba ficasse na China, a obra seria concluída em 102 dias, ao preço de R$ 170 milhões. Se a baía de Jiadhou ficasse no Brasil, a ponte não teria prazo para terminar e seria calculada em trilhões. Como o Ministério dos Transportes está arrendado ao PR, financiado por propinas, barganhas e permutas ilegais, o País do Carnaval abrigaria o partido mais rico do mundo.¨ Como consequência, deveria também citar que o País do Carnaval abrigaria o mais néscio colunista do mundo.

Confesso, seria sábio fazer uma distinção entre o blog de um colunista de Veja e a revista em si; mas como em seu blog há uma miríade de indicações da revista, se o aval direto ela não dá ao post, ao menos dá seu reconhecimento tácito da obra.

Essa mania de achar que com dois pontos se entende toda a matemática do mundo me causa ojeriza. Como contraexemplo, cito a ponte Champlain, em Montreal: apenas o dobro do comprimento da ponte tupiniquim, orçada em mais de R$ 10 bi. Qual seria a razão? É uma ponte diferente, necessidades diferentes, um país diferente, um terreno diferente; inúmeras são as razões, tantas que imaginar que Nunes, o suposto matemático, os que iniciaram a corrente de email não as viram, parece-me cada vez menos um erro honesto e cada vez mais a pura expressão matemática da má-fé.

Estudo indica

Rookie

Esses dias, cheguei a uma notícia que me traz aquele arrependimento de não ter, ao decorrer da vida, juntado uma coletânea das melhores matérias começadas ou terminadas por “estudo indica”. Já vi de tudo, desde estudo indicando o aumento dos preços de guarda-chuva quando chove a pesquisas apontando que o turismo será a indústria mais beneficiada na Copa do Mundo. Essa notícia, no entanto, chocou-me mais que as outras, é ela, da UOL: Estudantes que usam Twitter têm notas melhores e são mais comprometidos, aponta estudo.

A primeira coisa que aprendemos em uma aula de estatística é o lema, que levamos para nossa vida, correlação não implica causalidade. Arrisco dizer que a maior parte das torturas a que a estatística é submetida na mídia vêm dessa confusão, achar que porque duas coisas acontecem juntas, ou parecem acontecer juntas, então uma causa a outra, é o famoso achar que o Sol nasce porque o galo canta. Esse estudo não é diferente.

Somos levados a entender, pela matéria, que o Twitter é algo bom para os estudos. Segundo a autora da pesquisa: “Caroline chegou à conclusão de que o formato ‘tempo real’ do microblog permite que estudantes possam escrever de forma concisa, fazer pesquisas com resultados atualizados e, eventualmente, se comunicando diretamente com autores e pesquisadores.”. Esqueceram de avisar a essa senhora que os adolescentes não estão produzindo poesia moderna fixa a 140 caracteres, as pesquisas atualizadas feitas dificilmente versam sobre temas escolares (para isso se usa Google e Wikipédia) e se o abismo entre um pesquisador e o público já é grande, não são 140 caracteres que ajudarão.

Se precisasse opinar, seguiria Saramago nessa. Quando perguntado se, agora que tinha um blog, faria um Twitter, o escritor não hesitou: “Nem sequer é para mim uma tentação de neófito. Os tais 140 caracteres reflectem algo que já conhecíamos: a tendência para o monossílabo como forma de comunicação. De degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido.”. Um pouco drástico, mas me parece mais realista que o Twitter como novo mecanismo literário da juventude.

Ainda, o que me choca não é a ingenuidade panglossiana do estudo, mas a inferência de que se duas coisas vão juntas, uma certamente causa a outra. Uma explicação mais simples, e mais honesta, seria argumentar que alunos que usam Twitter de forma regular têm mais acesso à internet, mais interesse em ter esse acesso, acabam sendo expostos a mais conteúdo e costumam, como em um pacote, ser capazes de aprofundar seus interesses e seus estudos em seus interesses. O Twitter nada tem a ver com isso, e a notícia é propositalmente sensacionalista e enganosa. Causa-me espécie esse tipo de reportagem e o uso que ela faz de estatística.

Não apenas ela, costumamos, de maneiras mais ou menos sutis, associar correlação em causalidade no cotidiano. Desde usar aquela cueca da sorte em dia de final de campeonato a coisas mais sérias, como proibir seu filho de se divertir com um jogo porque o maníaco que atirou e matou cinco jogava o jogo, ou como o absurdo de justificar preconceitos dizendo que todas as vezes em que foi assaltado foram por pessoas de uma raça específica, ou que se vestiam de tal forma. O raciocínio por inferência é natural ao ser humano, devemos nos policiar para que esse instinto não se torne superstição, preconceito, ingenuidade ou, simplesmente, a crença de que o sol nasce porque o galo canta.

Para encerrar, deixo-lhes alguns gráficos para provar estudos muito mais relevantes. Todos nos quais correlação e causalidade são, comicamente, subvertidas e comparadas.

Estudo indica: o número de piratas em atividade pode afetar diretamente o aquecimento global. Salve o planeta, torne-se um pirata.

Estudo indica: comer chocolates aumenta suas chances de ganhar um prêmio Nobel. (Usei esse gráfico como exemplo cômico. Para meu horror, ele foi base de um artigo sério da BBC após a publicação desse post! Eles até colocam no final que correlação não implica causalidade, mas para quem lê os primeiros parágrafos, o jogo está perdido.)

Estudo indica: a qualidade do Rock afeta diretamente a produção de petróleo de um país.

Crime e castigo

Rookie

Há algum tempo, inspirado em um comentário desse blog, queria escrever algo sobre o fenômeno estatístico conhecido como regressão à média. Desde pequeno fui fascinado pela análise teórica do sermão que recebia de meus pais a cada travessura que aprontava. Quebrei janelas, copos, sujei-me, sujei a casa, nada voluntário, coisa de criança; mas recebia, a cada evento, a devida repreensão de pai ou mãe (ou dos dois, não eram excludentes). Também levava broncas por notas mais baixas, não tantos elogios pelas altas, que eram, afinal, minha obrigação. Achava que as coisas eram daquele jeito, que não poderia ser de outro jeito, até, entrando na faculdade, conversar com um amigo que cursava administração de empresas. Segundo ele, muito mais eficaz que esse método era o inverso, o tal do positive reinforcement, elogiar o que é bom e trabalhar no que está ruim, mostrar ao time vídeos com seus acertos ao invés de erros, meu amigo citava experiências sociológicas e psicológicas bem interessantes para provar seu ponto, mas eu custava a acreditar.

Dizer que a recompensa é o melhor caminho choca nossa experiência. Estamos habituados a ver resultados melhorarem após a repreensão, e muitos dizem que, após o elogio, o elogiado tende a piorar e a decepcionar, como se elogiar estragasse, como se ficar feliz e orgulhoso o tornasse relaxado. O post de hoje serve para desarmar esse argumento, e nossa ideia de que alguém “aprendeu a lição” após uma bronca bem tomada. Vou argumentar que esse fenômeno de fato existe, a piora em relação ao elogio e a melhora em relação à bronca, mas que ele reflete muito mais uma verdade estatística que uma mudança de comportamento.

Vamos imaginar uma criança, Denis, o pimentinha, que, ao decorrer do ano letivo, fará 20 provas. Ele não é o melhor da sala, nem o pior, e estuda um pouco para cada prova, mas não muito. Denis estuda suas matérias para tirar um 7,0, que é uma nota boa em sua opinião. No entanto, algumas vezes a prova é mais fácil, ou mais difícil, então sua nota varia; sua média é constante, mas as flutuações são aproximadamente de dois pontos em sua nota. Ou seja, vamos tratar a nota de Denis como uma variável aleatória de média 7,0 e distribuição normal com variância 1. Dessa forma, a chance de ele tirar acima de 9,0 é de 2,2%, e a chance de tirar abaixo de 5,0 também é de 2,2%, sendo 68,2% a probabilidade de ele tirar entre 6,0 e 8,0.

Esses números podem parecer estranhos, mas esse modelo é um dos mais adequados para representar tarefas humanas, a chamada distribuição gaussiana, ou distribuição normal. Ela diz que teremos um valor esperado (no caso de Denis, 7,0), mas que teremos dias bons e ruins. A maior parte dos dias (68,2%) não será muito longe do valor esperado (entre 6,0 e 8,0), mas alguns, excepcionais (2,2%), podem ser muito bons (acima de 9,0, caiu exatamente o que ele havia estudado!) ou muito ruins (abaixo de 5,0, não caiu quase nada do que ele sabia).

Sua mãe se preocupa com sua educação, e o disciplina como sua mãe a disciplinou. Ela dá um presente a Denis cada vez que ele tira uma nota acima de 9,0, e o castiga cada vez que ele tira uma nota abaixo de 5,0. Vejamos como seriam as notas de Denis em um ano:

O que a mãe de Denis entenderá desse gráfico? Note que toda vez que ela castiga Denis, suas notas tendem a subir, enquanto toda vez que ela o presenteia, ele tende a tirar notas piores! É importante notar que isso nada diz sobre o aprendizado de Denis, eu apenas tirei notas aleatoriamente, dizendo que Denis é um aluno nota 7,0 que tem dias bons e ruins.

Essa ilusão da eficácia do castigo ocorre porque é muito raro ter dois dias ruins seguidos, e a ilusão da ineficácia do elogio é pela também raridade de dois dias excepcionalmente bons. O valor seguinte ao de um dia excepcional tende a ser menos espetacular, ou, como dizemos, tende a regredir à média dos valores.

Note, eu não estou dizendo que o castigo tem eficácia zero no comportamento, ou que o presente também não tem efeito, estou apenas dizendo que o raciocínio de punir e melhorar e não elogiar para não estragar pode ser aplicado até a variáveis aleatórias. Certamente a maneira como uma pessoa é tratada influencia em sua performance, mas uma teoria de castigo e recompensa que pode ser explicada pelo mero acaso, pela estatística, não pode ser tida como uma grande verdade sobre o comportamento humano.

Em outras palavras, imagine-se alguém que considera tirar menos que 5 em um sorteio para o próximo número do bingo algo ruim, e que considera tirar mais que 95 um resultado bom. Você pode, por algum motivo, culpar aquela esfera engradeada que vomita os números pelo resultado, e eu garanto: se você der uma bronca nela após cada resultado menor que 5, ela vai muito provavelmente melhorar bastante na próxima vez. Se você elogiar a cada resultado acima de 95, ela provavelmente irá te decepcionar na próxima bola sorteada.

Não quero, nem pretendo, dizer que broncas são ineficazes, ou que a única resposta possível para educar ou ensinar são elogios, paz e amor. Lanço esse post na polêmica opinião que pede uma revisão de nossos conceitos da eficácia do castigo como aprendizagem. Para que você se pergunte quanto do que você aprendeu veio dos benefícios de um sermão, ou, ainda, quanto de cada melhora que viu após uma bronca foi resultado dessa bronca ou se foi, por puro acaso, um dia melhor que ontem.