Quase arte

Rookie

Se você, como eu, possui um leve TOC com simetrias, gosta das coisas em seus devidos lugares, detesta paredes não-perpendiculares pelo dilema de ter que escolher um eixo para alinhar coisas na sala ou, jogando Carcassonne, passa mais tempo arrumando as peças que pensando em sua jogada, esse post não é para você.

Quando eu era mais novo, passei por uma fase “física dos materiais” e me interessei bastante por propriedades eletrônicas de sólidos e cristais. Aprendemos que cristais são agregados de átomos em um padrão que se repete, que se reproduz. Um cristal de sódio e cloro, por exemplo, agrupa-se em uma estrutura periódica cúbica que se repete muitas, muitas vezes até formar um conglomerado colossal de átomos, que chamamos de sal.

Nessa aula de cristais, aprendi que toda estrutura cristalina possui um motif, cuja tradução desconheço. Essa palavra não é exclusiva da física ou da matemática, motif é, grosso modo, um fragmento que comporá uma grande obra, como um tijolo compõe casas. A quinta de Beethoven talvez possua o motif musical mais conhecido, as famosas três notas curtas acompanhadas de uma longa que abrem a sinfonia. Nos cristais é o mesmo, vejamos o motif do sal de cozinha:

Sendo a construção de um cristal feita com a repetição indefinida desse motif. Não apenas nos cristais, encontramos problemas similares a esse quando tentamos comprar azulejo para nossa casa. Durante muito, acreditou-se que redes cristalinas pudessem ser apenas de um entre dezessete tipos, conhecidos como os grupos de papéis de parede. Se você tem um azulejo em sua casa, garanto que ele pertence a um desses dezessete grupos.

Mas note que todas essas redes regulares possuem algo em comum: uma simetria. Redes triangulares possuem simetria de rotações por 120°, as quadradas são invariante por rotações de 90° e as hexagonais, por rotações de 60°. Essas simetrias são características dos cristais e uma boa parte de nossas técnicas de medição consiste em medir essa simetria, da seguinte ideia: você lança luz no cristal (ou elétrons, o importante é lançar algo), veja como o cristal rebate a luz e estuda o perfil formado na saída da luz. Com esse perfil, você entende como o cristal funciona. Um cristal de alumínio possui, por exemplo, simetria hexagonal. Não por menos, seu padrão de difração é algo assim:

No entanto, em 1982, Dan Shechtman faria medições de um composto de alumínio e manganês que lhe daria o seguinte padrão de difração:

diffraction

É difícil entender o quanto esse padrão chocou Shechtman, e como escandalizaria a comunidade da cristalografia. Se o padrão do alumínio era um hexágono, o que é perfeitamente aceitável, esse é um decágono. Em alguns pontos, traçando as linhas certas, percebemos uma simetria pentagonal no desenho. O problema é exatamente esse: a simetria pentagonal (72°) é proibida aos cristais! Você consegue criar um tapete usando quadrados, triângulos e hexágonos, mas jamais pentágonos! Você pode se enganar enfiando um pentágono aqui e ali, mas isso será apenas usar um pentágono para compor seu motif, e esse motif será reproduzido de forma triangular, quadrada ou hexagonal. Shechtman havia descoberto um monstro.

Com medo de sua descoberta, Shechtman levou dois anos para tomar coragem e publicar seus resultados. A comunidade científica estranhou de início, mas a matemática do assunto já havia sido desenvolvida desde 1964, estávamos vendo o primeiro caso de um quasicristal. Apresento-lhes um padrão similar ao do composto estudado por Shechtman, o belíssimo Al-Pd-Mn:

Notem a ausência de um padrão claro de repetição, um motif, e, ainda, uma aparente simetria que se quebra em pontos para ceder a outra simetria em uma dança de padrões pentagonais. Átomos de fato se agrupam assim, por uma razão atomicamente simples: muitas vezes, os compostos desejam fazer cinco ligações eletrônicas, que se repelem mutuamente. Nesse jogo de repulsão, elas forçam um padrão pentagonal e, quando ele não é mais possível (porque não há como cobrir um solo com pentágonos), há a quebra de simetria.

Esse tipo de padrão, ou de quase padrão, não é muito comum em nossa sociedade e nossa arte, mas a história é bem diferente na arte islâmica. Não sou especialista, mas sei que o número cinco não é lá bem visto nas religiões que herdamos, em especial o pentágono ou a estrela de cinco pontas. No mundo árabe, o cinco é um número querido, há cinco orações por dia, cinco meses sagrados no ano, e, em particular, o pentágono ou a estrela não apresentam problema. Não de forma surpreendente, encontramos na arte islâmica criada no período de ouro das civilizações árabes exemplos vastos de quasicristais:

Santuário de Darb-i Imam, em Isfahan

Igualmente interessantes são as propriedades de repetição dos quasicristais. Ainda que eles não possuam motif, possuem regiões que se repetem com alguma frequência. De fato, podemos afirmar que, grosso modo, toda região de diâmetro $R$ se repete em até uma distância de $2R$. Como exemplo, note que essas regiões pentagonais verdes assinaladas se repetem em uma distância ainda menor que seu tamanho:

Mais que isso, as diversas regiões assinaladas demonstram todas uma repetição em algum ponto próximo, dependendo do tamanho da região considerada, nunca estando mais que o dobro de seu tamanho de distância de seu irmão gêmeo mais próximo.

Muitos outros compostos foram descobertos com padrões desse tipo, e suas propriedades e aplicações ainda são um terreno aberto. Infelizmente me desviei desse campo, matrizes me atraem mais que pentágonos, mas não deixo de apreciar esses padrões, quase perfeitos, quase simétricos e totalmente belos.

7 ideias sobre “Quase arte

    1. Ricardo Marino Autor do post

      Você está coberto de razão, tenho sido relapso sem avisar. Estou preparando algo bem interessante para ser postado em breve, mas por enquanto o doutorado tem vencido o blog. Logo recupero o tempo perdido, prometo.

      Responder
      1. victor

        Ta certo, apenas fiquei preocupado. Acordo toda quinta (aqui no Brasil) esperando algo novo aqui, e olho todo dia pra ver se tem algo extraordinário. Mas se é pelo doutorado, tudo bem!

        Responder
  1. Fernanda

    Simplesmente adorei seu texto!!!!!!!! Estou conhecendo agora o mundo da cristalografia, é realmente fascinante e a maneira que você aborda seus assuntos é bastante atrativa.
    No momento estou sentindo falta de uma boa bibliografia da área para meu estudo, sou leiga no assunto. Já procurei bastante na internet, inclusive livros para comprar e só encontro livros para para serem importados. Também não encontrei nenhuma tradução do assunto. Sei que essa matéria é um pouco pesada de início e por isso aceito sugestões e recomendações… Desde já obrigada!!!

    Responder
    1. Ricardo Marino Autor do post

      Fernanda, infelizmente estou na mesma situação que você: não conheço nenhuma bibliografia traduzida sobre cristalografia. Mas, antes de te recomendar algum livro, preciso saber para que você precisa desse livro, se para graduação, pós-graduação, se para algo mais física, mais química, mais engenharia.

      Responder
      1. Fernanda

        Oi Ricardo, que bom que você conseguiu me responder…. Pois é, estou no primeiro semestre do mestrado em química na Universidade Federal de Goiás, fazendo uma disciplina que se chama ” Tópicos em Química: Cristalografia aplicada à determinação de estruturas moleculares”. Alguns tópicos da ementa são: Cristais, Redes, Simetria. Classes e sistemas cristalinos, Raios X, Difração de raio X por cristais, Cristalografia computacional…. etc. Meu professor indicou: Sherwood, Denis. Crystals, X-Rays and Proteins.

        Responder

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *